Novas Análises Sobre Evolução Humana Acirram o Debate de Quantas Eram as Espécies Ancestrais
Santiago Guimarães
Hilton P. Silva
Estamos a observar uma época da
paleoantropologia com muitos “nascimentos” de espécimes novos, e outros não tão
novos assim, como é o caso do debate recente em torno do já conhecido fóssil de
“Bodo” (Etiópia). Esse fóssil, datado de aproximadamente 600.000 anos, antes
identificado como um representante do Homo
heidelbergensis, acaba de ser o protagonista de uma hipotética mudança
quanto ao entendimento evolutivo acerca dos hominínios do Pleistoceno Médio (conhecido
também como período Chibaniano – 774.000-129.000 anos Antes do Presente).
Em princípio, pode-se pensar que a publicação
recente (Roksandic
et al., 2021) apresenta uma nova espécie. Porém, a sugestão foi
a de utilizar o crânio Bodo como meio de resolução de vários problemas em torno
do H. heidelbergensis (sensu
stricto e sensu lato), de ordem principalmente taxonômica, uma vez que este
taxa (uma potencial sub-espécie europeia) e Homo
rhodesiensis (uma potencial sub-espécie africana) são mal definidos e de
compreensão variável, não refletindo a gama completa de variabilidade de
hominínios do Pleistoceno Médio, devendo, portanto, serem abandonados na medida
em que novas descobertas e análises vão sendo realizadas.
Historicamente, o H. heidelbergensis foi proposto por Schoetensack, em 1908, com base na mandíbula
de Mauer (Alemanha), usada como holótipo para o táxon. No entanto, esse osso
tem sido normalmente considerado extremamente plástico e pode ou não refletir
mudanças morfológicas associadas no crânio. Ainda assim, essa mandíbula, considerada
em conjunto com as mandíbulas e fragmentos de ossos de Arago (França), levaram
à configuração do H. heidelbergensis,
mas essa se deu de maneira indireta. Com o passar do tempo, o grupo composto
pelos espécimes de Mauer e Arago, juntamente ao crânio de Petralona (Grécia),
foi associado aos espécimes africanos Kabwe 1 (Zambia) e Bodo (Etiópia), devido
às semelhanças morfológicas existentes nesses crânios. Tal feito acabou por expandir
a proposta de extensão geográfica e temporal do H. heidelbergensis, além de que, recentemente, levantou-se a
possibilidade de que alguns fósseis chineses considerados de H. sapiens “arcaico” também possam ser
incluídos no grupo do H. heidelbergensis.
Agora, Roksandic et al, (2021) chamam a atenção
de que tais eventos, juntamente à origem africana do Homo sapiens, ainda no Pleistoceno Médio, bem como as recentes espécies
identificadas e atribuídas ao gênero Homo
– H. floresiensis, H. naledi e H. luzonensis
- que foram contemporâneas à nossa linhagem, fazem com que a complexidade do
Pleistoceno Médio seja considerada como um período-chave para a história da
evolução humana. Além disso, foi nesse período que houve uma maior encefalização
e diminuição do tamanho dentário, em escala global, concomitantemente à
provável diferenciação de grupos dentro dos seus respectivos ambientes. Assim,
o questionar acerca da validade do taxon H.
heidelbergensis, considerando o Pleistoceno Médio, surgiria como um meio de
lançar novas hipóteses sobre os possíveis cenários para a evolução do gênero
Homo no período posterior – o Pleistoceno Tardio (entre 130.000 e 12.000 anos),
o que não é possível dentro da sistematização existente a partir do H. heidelbergensis.
Segundo Roksandic, Radovic, Wu e Bae, o
problema da variação do H. heidelbergensis relaciona-se a um
problema mais geral da paleontologia, que é o reconhecimento de paleoespécies.
Esse reconhecimento envolve a identificação das diferenças capazes de atribuir
um determinado fóssil a uma espécie específica, bem como de identificar as
semelhanças entre dois fósseis condizentes com uma única espécie ou espécies
diferentes. Considerando a problemática de Bodo, não quer dizer que o mesmo se
trate, de fato, de uma espécie biológica substancialmente diferenciada da de
outros fósseis com características morfológicas bastante similares às dele, mas
sim do ancestral comum mais recente dos hominíneos do Pleistoceno Tardio.
Uma vez que a maioria dos pesquisadores
aceita atualmente que Neandertais,
Denisovanos e humanos modernos constituem taxa-irmãos, é necessário repensar a
variabilidade do registro de hominíneos do Pleistoceno Médio, pois, ao que tudo
indica, é improvável que a variabilidade observada para este período possa ser
incluída em um único táxon – H.
heidelbergensis.
Para aqueles autores, o táxon H.
heidelbergensis sensu stricto (europeus) deve ser suprimido completamente e
os fósseis a ele associados realocados para H.
neanderthalensis, à luz de dados genéticos e morfológicos recentes. Nesse
sentido, espécimes datados de pelo menos 430 mil anos, como os hominínios de
Sima de los Huesos (Espanha), bem como os representantes de Arago e outros mais
antigos da Europa Ocidental (como é o caso da mandíbula Mauer, de 609 ± 40 mil
anos AP) deveriam ser considerados os primeiros membros da linhagem de
Neandertal, pois esses já mostram características derivadas de Neandertais. Esse
reordenamento não excluiria a presença de outros taxa na Europa, mais antigos
(por exemplo, o H. antecessor, datado
de 780 mil anos). Da mesma forma, a atribuição de hominídeos arcaicos
asiáticos, particularmente chineses, em H.
heidelbergensis, deve ser abandonada, pois os fósseis asiáticos mostram-se
distintos dos encontrados no Ocidente - Petralona, Kabwe e Bodo. No caso do H. rhodesiensis, o principal problema
seria relativo ao seu reconhecimento, haja vista que o mesmo nunca ganhou um
amplo uso na paleoantropologia, o que pode estar associado a uma má definição
do táxon pelo seu diverso uso, ou então pelo fato de o seu nome estar associado
à questão sociopolítica do antigo nome Rodésia, que implica problemas para a
comunidade científica.
É, em meio a essa problemática, que Roksandic, Radovic, Wu e Bae propõem a supressão dos táxons H. heidelbergensis e H. rhodesiensis, e a adoção de um único táxon que seria o ancestral comum mais recente dos táxons europeus, asiáticos e africanos do Pleistoceno Médio, algum tempo antes da divisão dos táxons eurasianos em Neandertais e Denisovanos e representaria o ancestral do Pleistoceno Médio de H. sapiens.
O hipodigma do H. bodoensis
incluiria o holótipo Bodo 1, além dos fósseis Kabwe 1, Ndutu (Etiópia),
Saldanha (Elandsfontein, África do Sul), Ngaloba (LH 18, Tanzânia), bem como alguns
espécimes do Pleistoceno Médio da Europa, como o calvário de Ceprano (Itália).
Ou seja, seria uma espécie com uma distribuição pan-africana, e também
extracontinental, estendendo-se no Mediterrâneo oriental (Sudeste da Europa e
Levante).
Por fim, vale lembrar que o aumento das
descobertas paleoantropológicas do Pleistoceno Tardio, bem como os avanços nas
pesquisas em paleogenética aumentam a complexidade quanto ao entendimento
acerca dos grupos humanos arcaicos. O surgimento de diversas linhagens, capazes
de realizar troca gênica entre si, necessita de uma sistematização. Nesse
sentido, o esforço para a admissão de um taxa ancestral em comum como base para
o surgimento de grupos africanos, europeus e asiáticos, tais como o H. bodoensis, parece ser um boa ideia,
pois vai ao encontro dos resultados e bases explanatórias que ganham força na atualidade
a partir de dados e achados mais recentes. Porém, em paleoantropologia, a
“sobrevivência” de novos taxa depende sobretudo do seu reconhecimento e uso
pela comunidade científica mundial.
Referências:
Ahern, J. Archaic Homo. In: Basics in Human Evolution. Cap. 12, 2015:163-175.
Pesquisadores propõem nomear nova espécie humana como “Homo bodoensis”. Super Interessante. https://super.abril.com.br/ciencia/pesquisadores-propoem-nomear-nova-especie-humana-como-homo-bodoensis/
Rightmire, P. The human cranium from Bodo, Ethiopia: evidence for speciation in the Middle Pleistocene? In: Journal of Human Evolution 31, 1996: 21-39.
Rightmire, P. Brain
size and encephalization in early to Mid-Pleistocene Homo. In: American Journal of Physical Anthropology
124(2), 2004: 109-123.
Rightmire, P. Homo in the middle pleistocene: hypodigms, variation, and species recognition. In: Evolutionary Anthropology 17, no.1, 2008: 8-21.
Rightmire. P. Homo erectus and Middle Pleistocene hominins: brain size, skull form, and species recognition. In: Journal of Human Evolution 65, 2013: 223-252.
Roksandic, M., Radovic, P., Wu, X-J., Cae, CJ. Resolving the “muddle in the middle”: the case for Homo bodoensis sp. nov. In: Evolutionary Anthropology, 2021:1-10.
Stringer, C. The status of Homo heidelbergensis In: Evolutionary Anthropology 21, 2012: 101-107.
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