Bioantropologia, Cinema e a COVID-19



  Em 2011 foi lançado um interessante filme sobre catástrofe biológica chamado Contagion (Contágio, em Português). Estrelado por Matt Damon, Gwyneth Paltrow e Jude Law, o filme apresenta o cenário de uma epidemia iniciada na China e trazida para os EUA e outros países por visitantes àquele país oriental. A doença, supostamente um tipo de “gripe” resultante de uma combinação casual de vírus de morcego e porco, “pula” para os humanos através de um cozinheiro descuidado, se espalha rapidamente pelos contactantes do restaurante sofisticado no qual ele é o chef e viaja o mundo causando muitas mortes, pânico nas relações sociais e o colapso dos sistemas de saúde. Estaria o diretor Steven Soderbergh, como um vidente providencial, antecipando a pandemia do Coronavírus em 2020? 
Na verdade, não. Embora muitos tenham visto uma notável semelhança entre o roteiro e a realidade, o que em semanas recentes alçou o filme ao topo da lista dos mais vistos, a película foi inspirada no vírus Nipah, um paramixovirus que causa desde uma síndrome respiratória aguda até encefalite grave e morte. Ele tem como reservatório morcegos frugívoros e foi identificado pela primeira vez na Malásia, em 1999. A contaminação se dá pela ingestão de frutas e vegetais que o morcego tenha provado ou nas quais tenha urinado. Porcos são comumente contaminados uma vez que são alimentados com restos de frutas que podem estar contaminados. O vírus não passa de pessoa para pessoa, mas tem uma letalidade de 40 a 79% em humanos, maior até que o Ebola. Felizmente não há registros de casos no Ocidente. Mas, a exemplo do Sars (2002), Mers (2012), e do Sars-Cov-2, que causa a pandemia atual (COVID-19), há continuamente milhares de espécies de vírus circulando pelo mundo, com graus variados de patogenicidade, muitos ainda não descritos pela ciência.
A maioria desses vírus tem como hospedeiros naturais os animais, selvagens ou domésticos, nos quais podem também causar epidemias letais ou serem apenas saprófitas. Quando há aglomerados de animais e humanos, como nas grandes fazendas de aves e de suínos pelo mundo, ou nos chamados Mercados Vivos, como o de Wuhan ou o nosso Ver-o-Peso, em Belém, a proximidade entre espécies diferentes, juntamente com suas excretas, sangue e alimentos, favorece a circulação de vírus e bactérias entre as espécies, facilitando a mutação dos microorganismos e sua adaptação a novos hospedeiros. Aparentemente foi isso o que aconteceu com o Sars-Cov-2, que seria o resultado de uma mutação de uma das espécies de Coronavírus adaptado a morcegos, que cruzou a barreira entre espécies para os pangolins e destes, através da manipulação e ingestão, para humanos. Morcegos e pangolins são iguarias alimentares em certos lugares da China, mas em seus respectivos habitats naturais eles não teriam qualquer relação. Por outro lado, os mercados vivos de animais selvagens, muito comuns na Ásia, África e América Latina, são os locais para onde convergem todos os tipos de criaturas que as pessoas tradicionalmente consomem em dias festivos ou ocasiões especiais. Esses mercados favorecem as trocas genéticas entre espécies porque a maioria dos bichos lá presentes não se encontrariam normalmente juntos na natureza, mas nesses lugares, empilhados uns sobre os outros, seus fluidos e alimentos facilmente se misturam, e com eles os respectivos micróbios. Por muitas razões, mercados em geral são antropologicamente fascinantes.
Mercado de Wuhan. Fonte: Wall Street, 2020.

Mercado Ver-o-Peso no século XIX. Fonte, NUNES, M., 2017.

Voltando ao cinema. Como Contágio, há diversos filmes sobre epidemias e pandemias. O já clássico e esotérico Twelve Monkeys (Doze Macacos), de 1995, com Bruce Willis e Brad Pitt, mistura viagem no tempo e uma pandemia viral devastadora como consequência da degradação ambiental do planeta. O filme gerou uma série homônima em 2015, que se estendeu por quatro temporadas. Dentre os mais conhecidos está também Outbreak (Epidemia) de 1999, estrelado por Dustin Hoffman, Morgan Freeman e Renee Russo. O roteiro é inspirado em um potencial surto do vírus Ebola nos EUA, a ser controlado pelo exército, que quer jogar uma bomba na cidade como medida de controle epidemiológico para proteger o resto do país. Para mim chamou atenção o fato de que no filme o vírus é transmitido por um símio que teria vindo da África só que, numa enorme falha de produção, o bicho mostrado é um Macaco Prego (gênero Sapajus), que só ocorre na América do Sul. 
Há ainda 28 Days Later (Extermínio) de 2002, no qual um vírus fabricado em laboratório na Inglaterra e inoculado em chimpanzés sai do controle e começa a transformar a população de Londres em zumbis violentos, que precisam ser contidos pelo exército. I Am Legend (Eu Sou a Lenda) de 2007, com Will Smith, também tem como trama um terrível vírus criado em laboratório nos EUA, que sai de controle e transforma as pessoas em zumbis assassinos. Blindness (Ensaio Sobre a Cegueira) de 2008, é dirigido pelo brasileiro Fernando Meireles, sendo baseado no livro homônimo de José Saramago. A trama também se inicia no Oriente, neste caso um motorista de táxi no Japão repentinamente fica cego e passa a infectar todos com quem tem contato. O filme mostra como o colapso dos sistemas de saúde pode levar as pessoas rapidamente a comportamentos egoístas e bárbaros. 
Uma película menos conhecida é Carriers (Vírus) de 2009, com Chris Pine, no qual uma epidemia de gripe aviária (na qual os afetados viram zumbis) infecta grande parte da população dos EUA, mata muita gente e causa o caos no país. Neste cenário apocalíptico um grupo de irmãos, amigos e outros desconhecidos busca sobreviver através da ajuda mútua. Já no introspectivo Perfect Sense (Sentidos do Amor) de 2011, com Ewan MacGregor e Eva Green, ela é uma epidemióloga desiludida e ele um chef de cozinha pegador. Eles se apaixonam em meio a uma estranha pandemia na qual as pessoas desenvolvem delírios e aos poucos vão perdendo os sentidos (olfato, paladar, visão). O filme nos chama a refletir sobre a necessidade humana de proximidade física e a dificuldade das relações sociais em um mundo no qual prevalece o individualismo. 
Por fim, um dos mais recentes é Maggie (Contágio – Epidemia Mortal) de 2015, com Arnold Schwarzeneger no papel do fazendeiro durão Wade Vogel. No longa, um vírus de origem desconhecida lentamente transforma todas as pessoas em zumbis canibais. A filha de Wade, Maggie, interpretada por Abigail Breslin, é contaminada e para proteger a família foge de casa. Nestes casos o procedimento é entregar a pessoa às autoridades o mais rápido possível. Porém, para evitar que Maggie seja capturada e levada para a quarentena, de onde ninguém jamais sai, Wade vai atrás dela, a leva para casa e enfrenta ao longo da trama, além dos oficiais que tentam retirá-la do convívio familiar, o dilema de se contaminar e de vê-la aos poucos definhar, se transformando em uma criatura assassina ou ...
Além desses, há vários outros filmes, séries e livros sobre o tema, que ora se aproximam, ora se afastam da realidade científica. Mas através de todos eles é possível encontrar algumas linhas em comum (além dos zumbis): todos envolvem aspectos bioculturais da humanidade.
A Bioantropologia é a área da antropologia que busca compreender as raízes bioculturais de nossa espécie, desde os ancestrais mais remotos entre os primatas bípedes que viveram na África há mais de sete milhões de anos, passando por toda a linhagem evolutiva dos gêneros Australopithecus e Homo, até chegar a nossa jovem espécie Homo sapiens, que tem apenas cerca de 300 mil anos de existência e, até tão recentemente quanto 20 ou 30 mil anos atrás, uma piscadela no tempo geológico, convivia com pelo menos três outras espécies de hominíneos (Homo floresiensis, Homo neanderthalensis e os Denisovanos). A Bioantropologia utiliza métodos, técnicas e instrumentos das ciências sociais e das ciências biomédicas para buscar compreender o que nos faz tão únicos no planeta. 
Segundo a Teoria Darwiniana, somos feitos biologicamente nos mesmos moldes que os outros animais. Porém, em algum momento ainda incerto de nossa evolução, o que chamamos de cultura passou a ser o principal motor de nossas vidas. Desde então a simbiose entre biologia e cultura determina cada momento de nossa existência. Afinal, a nossa é a única espécie a se preocupar com suas origens (Paleoantropologia), sua finitude (Antropologia Social), e estudar detalhadamente cada etapa de sua vida material (Arqueologia) e do seu corpo após a morte (Antropologia Forense).
Nossa espécie é resultado de muitas crises ambientais e ecológicas ocorridas ao longo dos últimos sete milhões de anos. Portanto, o surgimento de uma nova crise em escala global, como a pandemia de HIV/AIDS na década de 1980, ou a Covid-19, em 2020, são momentos particularmente interessantes para investigarmos como súbitas mudanças ecológicas, como a introdução de um novo patógeno, afetam nossa evolução, tanto do ponto de vista biológico como do ponto de vista cultural (Bioantropologia). 
Embora atualmente as principais causas de mortalidade no mundo estejam associadas às doenças cardiovasculares, os patógenos continuam pervasivos em nossas vidas. Além de uma causa importante de morbidade e mortalidade, especialmente em países mais pobres, os microorganismos são parte fundamental de nossa vida, seja através da flora bacteriana intestinal e cutânea, que ajuda em nossa digestão e nos protege até de algumas doenças crônicas; seja através das relações co-evolutivas que temos com uma infinidade de vírus, como os do resfriado, os da gripe e o Sars-Cov-2, aos quais o nosso corpo uma vez infectado, caso não seja eliminado pela seleção natural, desenvolve imunidade, enquanto eles continuam seu processo de mutação para voltar a nos infectar no futuro. 
Do ponto de vista evolutivo, talvez devamos nossa própria existência a bactérias ou vírus que, para nós, eram saprófitas inofensivas, mas eram letais para outras espécies, ou que infectaram com maior virulência aos neandertais do que aos nossos antepassados, contribuindo para a extinção dos proverbiais “Homens das Cavernas” do imaginário popular. As pesquisas de paleogenética e paleopatologia têm avançado rapidamente na busca por esclarecer as relações patógeno-hospedeiro no passado e decifrar as marcas por eles deixadas em nossa biologia atual.
A epidemias e pandemias também são importantes momentos de “experimentação” tanto da natureza sobre os nossos corpos, como dos diversos instrumentos sociais sobre a nossa vida cotidiana e a nossa cultura. Quantos hábitos sexuais e padrões de relações sociais não foram radicalmente alterados pela pandemia de HIV/AIDS, que acomete milhões de pessoas até hoje? Quantas serão as alterações cotidianas causadas pela corrente pandemia de Coronavírus? Alguns especialistas sugerem que, assim como a grande revolução do Neolítico, ocorrida há dez mil anos, transformou as sociedades humanas de caçadoras-coletoras nômades em grupos de horticultores sedentários, catapulta para a origem das cidades e de toda a nossa sociedade de consumo atual, a pandemia de hoje poderá obrigar a humanidade a forjar novas formas de convivência entre indivíduos, entre países; novas relações sociais e econômicas globais ou correr o risco de extinção. Infelizmente, embora nossa cultura possa ser preservada indefinidamente nos objetos que fazemos, livros que escrevemos, nos hard drives e nas modernas “nuvens” de armazenamento de dados, a seleção natural continua a agir tão impiedosamente em nossos corpos e genes como em qualquer outra das espécies que usamos para comer, brincar ou simplesmente admirar. 
As pandemias também são momentos de intensa experimentação social. Talvez por isso a alegoria dos zumbis, criaturas de origem e forma humana, mas de comportamento animal/irracional, afeitas apenas a seus próprios desejos, seja tão frequente nos filmes que usam a infecções como elemento central do roteiro. Nas películas e nos livros que as originam ou inspiram, aparecem sempre os elementos epidemiológicos clássicos que já estamos ficando acostumados a ouvir nos noticiários, como a fonte de infecção, os vetores, o padrão de contágio, a curva acelerada de crescimento dos novos infectados, a mortalidade dos mais vulneráveis e os sobreviventes resistentes, aqueles cujo sistema imune naturalmente os protege de progredir para o estágio de doença. São esses os elementos que cientistas, economistas e políticos estão tentando interpretar neste momento para decidir se devemos prosseguir em “parada total” e isolamento absoluto, ou se devemos liberar a circulação de pessoas e aguardar o desenvolvimento de uma “barreira imunológica natural”, quando o vírus contaminou a maioria da população e esta já desenvolveu imunidade, logo, ele não causa mais perigo de devastação populacional, embora possa ainda ser fatal para alguns.
Nos filmes aparecem também, simultaneamente, as possibilidades culturais de adaptação à nova situação. Enquanto os cientistas buscam a cura, a sociedade vai encontrando maneiras de sobreviver com o desconhecido através da fuga, do isolamento (o debate atual é se o melhor seria isolamento horizontal – onde todos ficam em casa; isolamento vertical – onde alguns, os mais vulneráveis, ficam em casa, ou mesmo isolamento “cirúrgico” – onde apenas idosos e doentes ficam em casa), do controle social, da tentativa de manutenção da normalidade dos corpos e da ordem política pelos agentes da lei (biopoder), em meio ao descontrole e egoísmo dos cidadãos e dos políticos, do pânico coletivo, da crescente escassez de insumos e alimentos, e do cansaço e desespero dos profissionais de saúde. A arte imita a vida ou a vida imita a arte?
Embora muitas vezes de forma alegórica e apocalíptica (espero nunca ter que presenciar de fato uma pandemia de zumbis), os filmes, como elementos culturais, também se propõem a chamar nossa atenção para a fragilidade de todas as formas de vida, a nossa incluída; para os impactos da crescente degradação e do uso irracional dos recursos naturais na saúde; para o desprezo de alguns pela ciência; para nossa desconexão com o ambiente no qual evoluímos. Muitas vezes as críticas são contundentes à sociedade de consumo, a ganância do capital, ao individualismo contemporâneo e à produção de armas biológicas, assuntos bastante em voga nesses tempos de novo Coronavírus. E todas as produções apontam como melhor resposta para a crise a solidariedade. José Saramago e Boaventura de Souza Santos nunca estiveram tão certos. 
Para encerrar, um olhar bioantropológico sobre a atualidade nos leva inquirir: Qual a real pandemia do mundo moderno? São as doenças infecciosas, patógenos emergentes e reemergentes que sempre ocorrerão de uma forma ou outra, pois estamos continuamente imersos no mundo biológico, com ele coevoluindo e nos adaptando? Ou a pandemia que pode nos levar a extinção provém da quebra das nossas relações sociais e ambientais, em confronto direto com nossas origens bioculturais?
Hilton P. Silva

Comentários

  1. Também me pergunto sobre qual a Pandemia que nos aflinge. Covid -19? Individualismo? Irracionalidade?
    Obrigado pela reflexão.

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  2. Nossa Hilton... muito bom texto
    ... muito orgulho de vc...

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