O Papel da Antropologia Forense no Combate às Ditaduras

Antropologia forense. Fonte: CHC 297

Entre 31 de março e 1 de abril de 1964 dava-se o golpe de Estado que derrubou o presidente João Goulart (Jango) e instalou a ditadura militar no Brasil, que duraria 21 anos, causando repercussões que perduram até hoje. Embora haja controvérsias em relação a qual foi a data exata do golpe, o fato inegável é que ele se deu no âmbito de um conjunto de intervenções ditatoriais militares em diversos países da América Latina que, segundo as Comissões da Verdade de diversos países resultaram em mais de 85.000 mortos e desaparecidos, muitos dos quais ainda permanecem sem identificação, e seus corpos jamais foram entregues às famílias.

Porém, com o fim das ditaduras no continente, após mais de duas décadas de regimes militares sanguinários, na década de 1990 começaram a operar em diversos países equipes multidisciplinares com forte envolvimento de antropólogos/as e arqueólogos/as forenses em parcerias muitas vezes com as famílias, com ONGs ou em alguns casos com o auxílio do Estado, na busca de resgatar as vítimas dos governos ditatoriais e reconciliar os fatos sobre as causas e mecanismos de mortes dos desaparecidos.

Com frequência, os corpos são encontrados em cemitérios clandestinos, em valas comuns, em enterramentos coletivos não marcados, em locais de difícil acesso, graças à memória de sobreviventes, de colaboradores, registros oficiais ou não oficiais e eventualmente até das próprias declarações dos perpetradores, enquadrados na Lei de Anistia. Para todos os envolvidos o trabalho é sempre penoso e, muitas vezes, perigoso.

Caso forense. Foto: Hilton Silva

No Brasil os casos mais emblemáticos são os da Vala de Perus, no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo capital, onde foram encontrados milhares de remanescentes humanos de pessoas consideradas inimigas do regime ditatorial civil-militar, do Cemitério Ricardo de Albuquerque no Rio de Janeiro, e do Cemitério de Xambioá, no Pará, onde foram inumados sem identificação pelas forças militares diversos indivíduos que participaram da Guerrilha do Araguaia, na região conhecida como “Bico do papagaio”. Para a identificação dessas vítimas, nas décadas de 1990 e 2000, as equipes em campo tiveram apoio da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) e da Equipe Peruana de Antropologia Forense (Apaf), ambas já internacionalmente reconhecidas pela atuação na identificação de desaparecidos políticos em seus países.

Para o andamento das investigações sobre os mortos e desaparecidos da ditadura, foi crucial a criação no Brasil da Comissão Nacional da Verdade (2011-2014). Segundo o Relatório da CNV (Cap 1):

“As ações da CNV visaram o fortalecimento das instituições democráticas, procurando beneficiar, em um primeiro plano, toda a sociedade, composta inclusive por 82 milhões de brasileiros que nasceram já sob o regime democrático. No contexto da passagem do cinquentenário do golpe de Estado que destituiu o governo constitucional do presidente João Goulart, a CNV atuou com a convicção de que o esclarecimento circunstanciado dos casos de detenção ilegal, tortura, morte, desaparecimento forçado e ocultação de cadáver, bem como a identificação de sua autoria e dos locais e instituições relacionados à prática dessas graves violações de direitos humanos, constitui dever elementar da solidariedade social e imperativo da decência, reclamados pela dignidade do país...”

Porém a CNV foi encerrada e apesar de seu robusto relatório, muitas de suas recomendações não foram cumpridas e grande parte dos trabalhos de busca e identificação de corpos foi paralizado.

Em todo caso, a atuação de antropólogos/as e arqueólogos/as forenses tem se mostrado crucial no Brasil e em diversos países vítimas de violações de direitos humanos para o resgate dos desaparecidos, para que suas histórias sejam lembradas e para que as atrocidades cometidas jamais voltem a ocorrer.

Atualmente, embora ainda haja grande carência de formação específica, o Brasil já conta com instituições empenhadas em preencher a lacuna de especialistas em Antropologia Forense, como o Mestrado em Ciências Forenses da Universidade de Pernambuco (MSF/UPE), criado em 2009, o PPGA/UFPA, criado em 2010 e único programa de pós-graduação a oferecer treinamento em antropologia forense para estudantes de mestrado e doutorado na área de concentração de Bioantropologia, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp (CAAF/Unifesp), criado em 2014, que tem oferecido diversos cursos de formação e especialização, e atuado em casos emblemáticos em São Paulo, e a Associação Brasileira de Antropologia Forense (ABRAF), criada em 2012, que tem realizado encontros científicos, desenvolvido cursos de formação, criou a primeira revista dedicada à AF no Brasil e tem trabalhado intensamente pela certificação de antropólogos/as forenses no país, entre outros.

Ao lembrar os 60 anos do Golpe Civil-Militar e suas duradouras repercussões negativas na política e na sociedade brasileira, o LEBIOS se junta a todos e todas que tem trabalhado no campo da antropologia forense, para lembrar a importância da democracia, condenar a violação dos Direitos Humanos, em qualquer lugar e época que ocorram, e para continuar a envidar todos os esforços para que as vítimas sejam identificadas e os perpetradores dos crimes levados à justiça.

Para saber mais:

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