Bioantropologia, Biotipo e Moda: Estamos evoluindo?
Hilton P. Silva
"Por me ostentar assim, tão orgulhosode ser não eu, mas artigo industrial,peço que meu nome retifiquem.Já não me convém o título de homem,meu nome novo é coisa.Eu sou a coisa, coisamente."
Em 2007 fui convidado para fazer uma palestra sobre Antropologia da Moda para um curso superior de Design e Moda. Na ocasião eu abordei a “evolução” das vestimentas, desde seu objetivo eminentemente adaptativo, com registros arqueológicos datando de mais de 150 mil anos, inicialmente na Ásia, até as características identitárias da contemporaneidade, quando roupa pode ser sinônimo de status social, de identificação étnica, de avanço tecnológico e, até, servir como um mecanismo adaptativo cultural altamente sofisticado para as diferentes condições ambientais em tempos de mudanças climáticas globais. Usei como parte da discussão um artigo da Folha de São Paulo, publicado em 20/06/2004, intitulado “Padrões da moda contradizem gosto nacional” (Sallum e Doval, 2004). A matéria falava sobre o descompasso entre o que se via nas passarelas como “modelos”, a realidade da maioria das mulheres brasileiras e o sofrimento de quem não consegue ter um “modelo ideal” de corpo. Em 12/10/2021, no artigo “76% das brasileiras têm corpo retangular, e indústria de moda aguarda novo padrão de roupas” (Madureira, 2021), também da Folha, o tema sobre biotipos e padrões nacionais reaparece sob uma outra perspectiva, mas há conexões interessantes.
Na década de 1930, em um momento de efervescência sobre a construção da sociedade e da identidade nacional, o então ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema procurou diversos cientistas brasileiros para saber qual seria a “figura ideal que nos seja lícito imaginar como representativa do futuro homem brasileiro”. Ele, assim como a indústria das vestimentas hoje em dia, estava em busca do “Homem médio”, aquela pessoa (ou roupa) que está no imaginário social como sendo o “padrão”, que deveríamos ter como “modelo”. Segundo Vimiero-Gomes (2016), a resposta geral foi que, do ponto de vista físico (Biotipológico), esse Homem médio seria “branco, como o típico morador do centro do país; com uma média de altura entre 1,66m e 1,70m, peso entre 60kg e 65kg, de cabelos lisos e cor escura da íris, e uma tendência à braquicefalia e à normotipia do rosto.” Será?
Muitas têm sido as tentativas de classificar as formas do corpo humano, como em Picnicos, Astênicos e Atléticos; Normoesplânquinicos, Megaloesplânquinicos e Microesplânquinicos; Normolíneos, Brevilíneos e Longilíneos; Normotipos, Braquitipos, Longitipos, e os Mixotipos (só existente no Brasil), cada uma associada a características sociais e psicológicas (Vimiero-Gomes, 2012). Mais recentemente a indústria da moda tem adotado a classificação de Ectomorfos, Mesomorfos e Endomorfos (Menegucci et al., 2017), ou combinações de formas geométricas e outras (Figura 1), como apresentado na matéria recente da Folha. Há, porém, um elemento que unifica o desafio da classificação das aparências humanas e a normatização dos padrões das vestimentas que é a multitude de formas dos corpos das pessoas. Somos uma espécie politípica.
Por exemplo, olhando a figura 2 é possível identificar que todos os "modelos" tem biotipo europeu (do norte do continente), ou seja pernas longas, com praticamente a mesma proporção entre comprimento da perna e da coxa, tronco alongado e braços finos, equivalentes a cerca de 2/3 das pernas, e todas representam figuras jovens. Em geral, independente da forma, elas trazem a mente uma “modelo” de passarela, como a Gisele Bündchen dos tempos dos desfiles, que por isso é considerada uma das maiores "supermodels" da história. Mas, nenhuma delas representa o corpo de uma mulher de fato, especialmente mulheres multíparas, cujas proporções são, em geral, muito diferentes de si mesmas pré-parto.
As primeiras medidas para normatização de roupas e calçados foram feitas para os exércitos, no Século XVIII, para facilitar a confecção de uniformes em escala de milhões (a antropometria reinava então). Naquela época, e até a primeira metade do Século XX, as roupas civis eram feitas sob medida, pelas costureiras ou alfaiates (ou pela mamãe ou a vovó). A "indústria da moda" (pret a porter) ganhou fôlego com o aparecimento dos tecidos sintéticos, a entrada das mulheres no mercado de trabalho e as novas tecnologias industriais pós-Segunda Guerra Mundial (a ciência da ergonomia ajudou bastante). Mas, então, o mercado consumidor era sobretudo branco, euroamericano e magro, e a indústria rapidamente adaptou as medidas do exército para os civis. À partir das décadas de 1950-1960, com a maior afluência (e mais comida pós-plano Marshal) as grandes lojas dos EUA, como a Macy´s e a JC Penny começaram a medir as mulheres para estabelecer melhores padrões para uma classe média afluente e mais "misturada" pelas migrações, e as análises estatísticas emergentes foram amplamente utilizadas para organizar grandes volumes de dados e estabelecer padrões de normalidade (o ápice da antropologia física aplicada).
A partir dos anos 1970-1980 a classe média mundial engordou
graças ao "Big Mac" e seus congêneres e também cresceu em estatura (e
tamanho dos pés), a globalização aumentou o fluxo gênico e a diversidade entrou
em moda. No Século XXI, considerando as mudanças físicas e culturais na
população, a indústria das roupas precisa acompanhar a globalização, uma vez
que grande parte dos produtos de vestuário é importada da Ásia, e agora deve
voltar a medir e classificar as pessoas para garantir que as roupas possam ser
vendidas para toda a nossa diversidade biocultural e se reduza os custos da
engenharia reversa (devoluções e trocas). No entanto, apesar dos esforços do
INMETRO, chega-se à conclusão que nossos corpos não vêm em uma, duas, cinco ou
dez formas. São inúmeras. Dizer que La Bündchen tem uma forma "retangular"
é uma simplificação para lá de grosseira da realidade. Por outro lado, para não
perder a piada, eu diria que a maioria das pessoas que podem ir a uma loja
comprar roupa hoje tem uma forma "globular", que faz com que muito
raramente você ache que alguma peça fica realmente “boa” em você.
A discussão sobre roupas, medidas e modas é mais do que uma discussão técnica ou mesmo econômica, ela é também sobre normalidade, identidade, estética, colonialismo, dominação, eugenia e diversidade. Quando pergunto no título deste texto se estamos evoluindo, não me refiro às adaptações biológicas, influenciadas pelas forças da Seleção Natural pelas quais nossa espécie vem passando desde sua origem, mas ao debate sobre as normas e regras que buscam nos “enquadrar” biológica e socialmente em “tipos” predeterminados, idealizados (Figura 3), que na maioria das vezes, refletem os nossos (pré)conceitos e servem ao mercado, e não à complexa realidade biocultural da Humanidade. No Outubro Rosa, mês dedicado à saúde da mulher, inclusive a mental, refletir sobre (estéreo)tipos associados a visões sobre roupas e corpos é fundamental. Quando se trata com pessoas, não há homem ou mulher “médio”. Cada indivíduo é metro de si. Num futuro não muito distante, assim como ocorreu com o mito das raças humanas, o mito dos biotipos também cairá, e pelo menos neste aspecto não estaremos mais sujeitos à uma tentativa de “bionormatização” ou ao Biopoder. As roupas, feitas com tecidos sintéticos inteligentes, é que deverão se adaptar ao nosso corpo e objetivos, e não nós a elas.
Referências:
MADUREIRA, Daniele. 76% das brasileiras têm corpo retangular, e indústria de moda aguarda novo padrão de roupas. Folha de São Paulo, 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/10/brasil-discute-ha-quase-uma-decada-o-tamanho-das-roupas-das-mulheres.shtml
MENEGUCCI, Franciele; CARVALHO, Bernardete; IÔ, Vanessa. O estudo dos biótipos através da modelagem plana. 2017. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/anais/Coloquio%20de%20Moda%20-%202017/COM_ORAL/co_2/co_2_O_estudo_dos_biotipos.pdf .
SALLUM, Erika; Do Val, André. Padrões da moda contradizem gosto nacional. Folha de São Paulo, 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2006200406.htm
VIMIEIRO-GOMES, Ana Carolina. Biotipologia, regionalismo e a construção de uma identidade corporal brasileira no plural, década de 1930. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, supl., dez. 2016, p.111-129. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/8chbDhgTDW4kKvs5fYMr4qp/?format=pdf&lang=pt
VIMIEIRO-GOMES, Ana Carolina. A emergência da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o temperamento do brasileiro na década de 1930. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 7, n. 3, p. 705-719, set.-dez. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/f9gnSVZxQ3t3HkmqpRsW3mS/?lang=pt&format=pdf
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