A Língua de Darwin: A Seleção Natural Aplicada às Línguas Naturais
Artigo de Paulo Manes e
Maria Flávia Figueiredo
O que é, de fato,
a vida? O que é que caracteriza um ser vivo e o diferencia da matéria inanimada?
Para os biólogos, a vida é caracterizada por alguns fatores: metabolismo,
homeostase, capacidade de crescer e responder a estímulos, a capacidade de se
reproduzir e, finalmente, a capacidade de se adaptar ao meio em que está
inserida, por meio da seleção natural. Podemos dizer que a vida é a
transformação constante de uma estrutura básica e estável.
Há muito se discute se às línguas naturais pode ser conferido o título de
“vivas”. De um lado, temos os que defendem as semelhanças entre elas e os seres
vivos, e, de outro, temos aqueles que afirmam serem as línguas apenas mais um
fenômeno social. Apesar de a semelhança entre línguas e entidades vivas parecer
evidente, é necessária uma breve comparação entre essas duas existências. O
metabolismo pode ser definido como o conjunto de reações químicas que ocorre
nos organismos vivos para sustentar sua vida; a homeostase é a propriedade que
mantém um sistema regulado e estável internamente; o crescimento é a capacidade
de se desenvolver e se transformar em algo maior e/ou mais complexo; a resposta
a estímulos é a capacidade de responder a alterações no ambiente externo ou
interno, e a capacidade de reprodução é a possibilidade de gerar descendentes;
por f m, a adaptação é o processo por meio do qual, com o correr do tempo, a
vida se torna mais bem “configurada” ao ambiente em que está inserida,
aumentando assim as chances de sobrevivência.
As línguas naturais têm, se não todas, pelo menos a maioria das características
que atribuímos à vida. Notaremos que o metabolismo das línguas se constitui na
língua falada. Esta é a realização da língua, isto é, sem ela não existe nada
que seja observável ou passível de estudo no campo da linguística. Sem a fala
não há uma língua de facto, não há “vida” na língua: apenas um sistema
estático, “inorgânico”.
A homeostase da língua se caracteriza pela estrutura linguística subjacente:
sua gramática. Não é possível conceber a existência de uma língua agramatical.
Sentenças ditas agramaticais, ou seja, que não estejam de acordo com a
gramática da língua por fugirem do “equilíbrio linguístico” que garante a ordem
do sistema, não encontram sustentação e simplesmente desaparecem, sem sequer
terem sido pronunciadas. Que as línguas crescem, ou seja, que se tornam maiores
e mais complexas com o passar do tempo, é inquestionável. Basta que observemos
a quantidade de neologismos surgidos quase diariamente em qualquer língua
existente.
No que se refere à resposta a estímulos, talvez a língua seja o melhor exemplo
para estudo, uma vez que mudamos nossa forma de expressão a todo momento:
conforme os estímulos são alterados (mudanças de situação, interlocutores, o
tom de um texto etc.), a língua também se altera, tendo uma espécie de
sensibilidade, própria de seres vivos. Outro ponto inquestionável é a
capacidade de reprodução das línguas naturais. O português é uma das muitas
línguas-filhas do latim, bem como o italiano, o francês, o espanhol, o romeno,
o catalão e outras 42 línguas. A família do indo-europeu, da qual as línguas
itálicas fazem parte, consiste em quase 450 línguas diferentes.
Associada à capacidade de reprodução, encontramos a capacidade de adaptação das
línguas naturais. Uma vez separadas do ramo principal e isoladas
geograficamente de sua língua-mãe, as variantes linguísticas se tornarão
maiores e mais maduras até constituírem línguas próprias e distintas, como
ocorreu com o português e o francês, por exemplo, após a queda do Império
Romano e o consequente enfraquecimento do latim.
Dessa forma, as línguas merecem, sim, o título de “vivas”, ainda que,
evidentemente, com reservas. Como Darwin nos ensina em seu A origem das
espécies, os seres vivos estão sujeitos a transformações em si próprios e no
ambiente em que vivem. Não fosse assim, jamais teríamos a maravilhosa diversidade
ao nosso redor, com criaturas perfeitamente adaptadas a certos ambientes e
funções, como a famosa Xanthopan morgani, a “mariposa que Darwin previu”.
Darwin descobriu um mecanismo natural que preserva as características úteis à
sobrevivência de um indivíduo e descarta as prejudiciais. Esse mecanismo – a
seleção natural – é tão poderoso e universal que pode ser aplicado a
praticamente qualquer sistema complexo. A língua de Darwin é afiada e poderosa,
já que descreve o funcionamento da Natureza com precisão espantosa. É a língua
da variação e da adaptação, da vida e da maravilha que nos cerca neste mundo.
Realmente, “há grandeza nessa forma de ver a vida”.
Outras informações em: http://www2.uol.com.br/sciam/artigos/a_lingua_de_darwin.html
Comentários
Postar um comentário