Novas Análises Sobre Evolução Humana Acirram o Debate de Quantas Eram as Espécies Ancestrais

 Santiago Guimarães

Hilton P. Silva

Diorama H. bodoensis (Autor: Ettore Mazza. Fonte: BBC Brasil, https://www.bbc.com/portuguese/geral-59192746)

Estamos a observar uma época da paleoantropologia com muitos “nascimentos” de espécimes novos, e outros não tão novos assim, como é o caso do debate recente em torno do já conhecido fóssil de “Bodo” (Etiópia). Esse fóssil, datado de aproximadamente 600.000 anos, antes identificado como um representante do Homo heidelbergensis, acaba de ser o protagonista de uma hipotética mudança quanto ao entendimento evolutivo acerca dos hominínios do Pleistoceno Médio (conhecido também como período Chibaniano – 774.000-129.000 anos Antes do Presente).

Em princípio, pode-se pensar que a publicação recente (Roksandic et al., 2021) apresenta uma nova espécie. Porém, a sugestão foi a de utilizar o crânio Bodo como meio de resolução de vários problemas em torno do H. heidelbergensis (sensu stricto e sensu lato), de ordem principalmente taxonômica, uma vez que este taxa (uma potencial sub-espécie europeia) e Homo rhodesiensis (uma potencial sub-espécie africana) são mal definidos e de compreensão variável, não refletindo a gama completa de variabilidade de hominínios do Pleistoceno Médio, devendo, portanto, serem abandonados na medida em que novas descobertas e análises vão sendo realizadas.

Homo rhodesiensis (Fonte: Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Homo_rhodesiensis)

Historicamente, o H. heidelbergensis foi proposto por Schoetensack, em 1908, com base na mandíbula de Mauer (Alemanha), usada como holótipo para o táxon. No entanto, esse osso tem sido normalmente considerado extremamente plástico e pode ou não refletir mudanças morfológicas associadas no crânio. Ainda assim, essa mandíbula, considerada em conjunto com as mandíbulas e fragmentos de ossos de Arago (França), levaram à configuração do H. heidelbergensis, mas essa se deu de maneira indireta. Com o passar do tempo, o grupo composto pelos espécimes de Mauer e Arago, juntamente ao crânio de Petralona (Grécia), foi associado aos espécimes africanos Kabwe 1 (Zambia) e Bodo (Etiópia), devido às semelhanças morfológicas existentes nesses crânios. Tal feito acabou por expandir a proposta de extensão geográfica e temporal do H. heidelbergensis, além de que, recentemente, levantou-se a possibilidade de que alguns fósseis chineses considerados de H. sapiens “arcaico” também possam ser incluídos no grupo do H. heidelbergensis.

Agora, Roksandic et al, (2021) chamam a atenção de que tais eventos, juntamente à origem africana do Homo sapiens, ainda no Pleistoceno Médio, bem como as recentes espécies identificadas e atribuídas ao gênero Homo – H. floresiensis, H. naledi e H. luzonensis - que foram contemporâneas à nossa linhagem, fazem com que a complexidade do Pleistoceno Médio seja considerada como um período-chave para a história da evolução humana. Além disso, foi nesse período que houve uma maior encefalização e diminuição do tamanho dentário, em escala global, concomitantemente à provável diferenciação de grupos dentro dos seus respectivos ambientes. Assim, o questionar acerca da validade do taxon H. heidelbergensis, considerando o Pleistoceno Médio, surgiria como um meio de lançar novas hipóteses sobre os possíveis cenários para a evolução do gênero Homo no período posterior – o Pleistoceno Tardio (entre 130.000 e 12.000 anos), o que não é possível dentro da sistematização existente a partir do H. heidelbergensis.

Mandíbula de Mauer - Homo heidelbergensis. Fonte: Museu Nacional-UFRJ)

Segundo Roksandic, Radovic, Wu e Bae, o problema da variação do H. heidelbergensis relaciona-se a um problema mais geral da paleontologia, que é o reconhecimento de paleoespécies. Esse reconhecimento envolve a identificação das diferenças capazes de atribuir um determinado fóssil a uma espécie específica, bem como de identificar as semelhanças entre dois fósseis condizentes com uma única espécie ou espécies diferentes. Considerando a problemática de Bodo, não quer dizer que o mesmo se trate, de fato, de uma espécie biológica substancialmente diferenciada da de outros fósseis com características morfológicas bastante similares às dele, mas sim do ancestral comum mais recente dos hominíneos do Pleistoceno Tardio.

Uma vez que a maioria dos pesquisadores aceita atualmente que Neandertais, Denisovanos e humanos modernos constituem taxa-irmãos, é necessário repensar a variabilidade do registro de hominíneos do Pleistoceno Médio, pois, ao que tudo indica, é improvável que a variabilidade observada para este período possa ser incluída em um único táxon – H. heidelbergensis.

Para aqueles autores, o táxon H. heidelbergensis sensu stricto (europeus) deve ser suprimido completamente e os fósseis a ele associados realocados para H. neanderthalensis, à luz de dados genéticos e morfológicos recentes. Nesse sentido, espécimes datados de pelo menos 430 mil anos, como os hominínios de Sima de los Huesos (Espanha), bem como os representantes de Arago e outros mais antigos da Europa Ocidental (como é o caso da mandíbula Mauer, de 609 ± 40 mil anos AP) deveriam ser considerados os primeiros membros da linhagem de Neandertal, pois esses já mostram características derivadas de Neandertais. Esse reordenamento não excluiria a presença de outros taxa na Europa, mais antigos (por exemplo, o H. antecessor, datado de 780 mil anos). Da mesma forma, a atribuição de hominídeos arcaicos asiáticos, particularmente chineses, em H. heidelbergensis, deve ser abandonada, pois os fósseis asiáticos mostram-se distintos dos encontrados no Ocidente - Petralona, Kabwe e Bodo. No caso do H. rhodesiensis, o principal problema seria relativo ao seu reconhecimento, haja vista que o mesmo nunca ganhou um amplo uso na paleoantropologia, o que pode estar associado a uma má definição do táxon pelo seu diverso uso, ou então pelo fato de o seu nome estar associado à questão sociopolítica do antigo nome Rodésia, que implica problemas para a comunidade científica.

Diorama H. neanderthalensis (Fonte: Correio Braziliense, 2014)

É, em meio a essa problemática, que Roksandic, Radovic, Wu e Bae propõem a supressão dos táxons H. heidelbergensis e H. rhodesiensis, e a adoção de um único táxon que seria o ancestral comum mais recente dos táxons europeus, asiáticos e africanos do Pleistoceno Médio, algum tempo antes da divisão dos táxons eurasianos em Neandertais e Denisovanos e representaria o ancestral do Pleistoceno Médio de H. sapiens.

O hipodigma do H. bodoensis incluiria o holótipo Bodo 1, além dos fósseis Kabwe 1, Ndutu (Etiópia), Saldanha (Elandsfontein, África do Sul), Ngaloba (LH 18, Tanzânia), bem como alguns espécimes do Pleistoceno Médio da Europa, como o calvário de Ceprano (Itália). Ou seja, seria uma espécie com uma distribuição pan-africana, e também extracontinental, estendendo-se no Mediterrâneo oriental (Sudeste da Europa e Levante).

Por fim, vale lembrar que o aumento das descobertas paleoantropológicas do Pleistoceno Tardio, bem como os avanços nas pesquisas em paleogenética aumentam a complexidade quanto ao entendimento acerca dos grupos humanos arcaicos. O surgimento de diversas linhagens, capazes de realizar troca gênica entre si, necessita de uma sistematização. Nesse sentido, o esforço para a admissão de um taxa ancestral em comum como base para o surgimento de grupos africanos, europeus e asiáticos, tais como o H. bodoensis, parece ser um boa ideia, pois vai ao encontro dos resultados e bases explanatórias que ganham força na atualidade a partir de dados e achados mais recentes. Porém, em paleoantropologia, a “sobrevivência” de novos taxa depende sobretudo do seu reconhecimento e uso pela comunidade científica mundial.

 

 

Referências:

Ahern, J. Archaic Homo. In: Basics in Human Evolution. Cap. 12, 2015:163-175.

Fioratti, C. Pesquisadores propõem nomear nova espécie humana como “Homo bodoensis”. Super Interessante. 29 out 2021. Acesso em: https://super.abril.com.br/ciencia/pesquisadores-propoem-nomear-nova-especie-humana-como-homo-bodoensis/

Rightmire, P. The human cranium from Bodo, Ethiopia: evidence for speciation in the Middle Pleistocene? In: Journal of Human Evolution 31, 1996: 21-39.


Rightmire, P. Brain size and encephalization in early to Mid-Pleistocene Homo. In: American Journal of Physical Anthropology 124(2), 2004: 109-123.

Rightmire, P. Homo in the middle pleistocene: hypodigms, variation, and species recognition. In: Evolutionary Anthropology 17, no.1, 2008: 8-21.

Rightmire. P. Homo erectus and Middle Pleistocene hominins: brain size, skull form, and species recognition. In: Journal of Human Evolution 65, 2013: 223-252.

Roksandic, M., Radovic, P., Wu, X-J., Cae, CJ. Resolving the “muddle in the middle”: the case for Homo bodoensis sp. nov. In: Evolutionary Anthropology, 2021:1-10.

Stringer, C. The status of Homo heidelbergensis In: Evolutionary Anthropology 21, 2012: 101-107.

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