As Populações Quilombolas Brasileiras e o Enfrentamento da COVID-19
O Brasil é atualmente o terceiro país em casos de Covid-19 e o segundo em número de mortes pela doença no mundo. Mas o vírus não acomete todas as populações igualmente.
Os negros e outros grupos socialmente discriminados têm sido desproporcionalmente afetados pela pandemia. Por aqui, o quadro de vulnerabilidade histórica a que estão submetidas as populações quilombolas, faz com que estas sejam especialmente atingidas.
Crianças Quilombolas da Comunidade de Tabatinga-Médio. Cametá. Pará. Foto: Ariana da Silva.Com o avanço da pandemia, segundo dados de organizações independentes, a população negra em geral passou a liderar o número de infectados e mortos no país, mesmo que o Estado continue a negligenciar a produção de dados oficiais.
Diante da ausência de ações governamentais, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) vem organizando a luta por garantia dos direitos constitucionais para esta população, inclusive com a apresentação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 742/2020) junto ao Supremo Tribunal Federal.
Na ADPF a entidade afirma que a pandemia decorrente da Covid-19 afeta distintos setores da população brasileira de formas diferentes e desproporcionais e que as comunidades quilombolas encontram-se em maior grau de vulnerabilidade aos efeitos da doença quando comparadas ao restante da população.
Ainda segundo os termos da ADPF, esse quadro se relaciona ao racismo estrutural e institucional prevalentes na sociedade brasileira. Para a CONAQ, historicamente, as comunidades quilombolas têm sido colocadas à margem das políticas, inviabilizando acesso a direitos e garantias fundamentais e, assim, prejudicando de forma sensível o desenvolvimento digno desses grupos, de papel fundamental na formação da identidade nacional.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro, a existência de uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional associada ao surgimento do novo coronavírus.
Ao longo dos meses seguintes, diversas denúncias foram feitas sobre a falta de planos de contingência para as populações quilombolas.
Em 10 de abril, por pressão da sociedade civil, os dados sobre raça/cor passaram a fazer parte dos registros do Ministério da Saúde relacionados à Covid-19, mas não há neles menção a quilombolas.
Somente em 17 de setembro o Ministério da Saúde publicou a Portaria Nº 2.405 instituindo um incentivo financeiro federal excepcional por causa da Covid-19 para a Atenção Primária de populações específicas, entre elas os quilombolas.
A maior concentração de casos é na Região Norte, escancarando as desigualdades regionais e étnico-raciais no país.
Em particular no Pará, em função das grandes distâncias, dificuldades de acesso e crônica falta de infraestrutura de saúde nos quilombos, que se somam a ausência de políticas de Estado consistentes e continuadas, não há perspectiva que a situação venha a ser adequadamente resolvida no curto prazo.
Em que pese os esforços de alguns setores da saúde como a Coordenação Estadual de Saúde Indígena e de Populações Tradicionais (Cesipt) e a vigilância estadual, que contam com pessoal e recursos reduzidos, as ações continuam pontuais.
O estado tem o maior número de áreas quilombolas tituladas. São mais de seis mil famílias em 64 municípios. Até o dia 21 de setembro, de acordo com a Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos (Malungu) e o Núcleo Sacaca da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), que monitoram a situação via contatos pessoais com os líderes locais, já havia 2054 casos confirmados e 46 óbitos, representando cerca de um terço das mortes do país. Como ainda não há testagem suficiente ou sistema de registro oficial, os casos e mortes quilombolas não notificados são impossíveis de calcular. Até o momento, por todo o país, o levantamento e divulgação dos dados depende inteiramente de iniciativas das próprias comunidades, em parceria com as organizações quilombolas e as universidades públicas.
Fonte: Malungu
Como forma se proteger da pandemia, em todo o país, as comunidades quilombolas têm optado pelo autoisolamento, montando barreiras sanitárias, buscando manter estranhos fora e seguir normas de quarentena para quem precisa sair para buscar alimentos, medicamentos ou levar parentes aos hospitais.
Mas isso tem gerado conflitos internos com pessoas que dependem do comércio, e externos, com vizinhos das áreas que demandam o direito de continuar a trafegar livremente pelas vias comuns.
As barreiras também podem agravar algumas situações de saúde, na medida em que a Atenção Básica sempre foi precária nas áreas rurais e há muitas pessoas com doenças crônicas como hipertensão, diabetes, obesidade e doença falciforme, que precisam de acompanhamento regular não existente nas comunidades. Essas pessoas estão nos grupos de risco para Covid-19, o que aumenta sua chance de morrer na busca por serviços de saúde em áreas urbanas ou caso sejam contaminadas dentro da comunidade.
As populações quilombolas em geral dependem da venda de produtos da agricultura familiar para sobreviver. No entanto, acossadas por conflitos fundiários, que não deram trégua durante a pandemia, e sem poder sair por causa da Covid-19, as comunidades têm sofrido com insegurança alimentar.
Como agravante, grande parte dos moradores não conseguiu acessar o auxílio emergencial do governo federal. Em muitas áreas não há eletricidade, acesso a internet e as pessoas não tem telefone, CPF e/ou são analfabetas e não conseguiram fazer o cadastro.
Outras, quando conseguem, não podem se deslocar até a cidade para buscar os recursos por falta de transporte, de dinheiro ou medo de contágio.
Como os milhões de brasileiros sem acesso à moradia, telefone, internet e água potável que eram “desconhecidos” pelo governo até recentemente, o acesso dos quilombolas ao serviço de assistência emergencial também esquecido no planejamento oficial.
Diversas pesquisas realizadas por membros do Grupo de Trabalho sobre Saúde e Racismo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) têm demonstrado que, de sul a norte do país, os afrodescendentes apresentam rica história de lutas pela preservação dos recursos naturais e são detentores de vastos conhecimentos tradicionais.
Porém, sempre sofreram com a falta de acesso à terra, elevadas taxas de doenças preveníveis, ausência de saneamento ambiental e infraestrutura viária, continuam a viver em moradias precárias, onde qualquer tipo de isolamento social intrafamiliar é impossível, não têm acesso à água tratada, há grande dependência de programas de transferência de renda, baixa escolaridade e serviços muito limitados de saúde e Atenção Básica regular.
Adicionalmente, durante a pandemia houve redução da ação dos Agentes Comunitários de Saúde em grande parte dos municípios brasileiros, sendo que estes são a única fonte de serviços de saúde para muitos quilombos.
Acostumadas a lidar com a necropolítica do Estado, as mais de seis mil comunidades quilombolas do Brasil recorrem às suas tradições culturais, religiosidade, conhecimentos etnobiológicos, auto-organização e solidariedade mútua para suportar o racismo estatal e a Covid-19.
Lamentavelmente, embora estejamos no meio da Década Internacional dos Afrodescendentes da Organização das Nações Unidas (2015-2024), e 132 anos após a abolição da escravatura, as populações quilombolas continuam a clamar por justiça.
Este artigo teve como base a Nota Técnica dos autores produzida para a ABRASCO contando com apoio do Fundo de População das Nações Unidas no Brasil (UNFPA).
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