Luzia, a esperança que ressurgiu das cinzas

Querida Luzia
Que alegria revê-la. Que alívio. Por pouco mais de um mês, pensei que você jamais voltaria e isso era mais do que perder um fóssil de uma mulher que viveu há 11.500 anos. Era como se, sem esse fio da meada, ficássemos perdidos, desterrados.

A notícia alvissareira que acaba de ser publicada é a de que, numa caixa de ferro parcialmente derretida, dentro de um armário destruído, nos escombros do museu que ardeu em chamas, lá estava você resistindo. Não sei por que você, ao morrer, foi colocada na fenda de uma caverna na Lagoa Santa, Minas Gerais, para voltar ao pó. Nem sei por que, desafiando toda a ordem da natureza, quis ficar pelos milênios nos aguardando. Nada sei desse seu passado, mas gostaria de falar do tempo recente em que seu crânio foi estudado e se transformou em orgulho nacional, porque sua existência provava que era nossa, era brasileira, a mulher mais antiga das Américas. Você explica, ao surgir, a nossa origem, nos ensina a permanência, nos enraíza. Seu rosto moreno foi refeito, depois do crânio reconstituído e, desta forma, o país passou a ter intimidade com você. “Quem é aquela?”, perguntavam as crianças. E nós os adultos respondíamos envaidecidos: “É Luzia, a primeira brasileira”.

Quando o fogo do descuido, do assombroso erro, dos fios que deixamos desencapados, do desmonte cultural que permitimos, quando aquele fogo se espalhou pelo palácio, as pessoas quiseram saber: “onde está Luzia?” A notícia aterradora chegou impiedosa: “Luzia morreu”. Os jornalistas, os antropólogos, os historiadores, os museólogos e os poetas escreveram desconsolados sobre você e sua saga. Parecia que seu destino terminava ali, nas cinzas do museu da nossa derrota.

Mas agora, 47 dias depois, o país foi informado de que você decidira lutar mais uma vez, ficar mais uma vez e voltar em partes que serão recompostas para nos dar mais uma chance. Você chega Luzia, quando mais precisamos.

Há uma estranha mensagem no ar nestes dias difíceis, e você certamente desaprova seu teor, de que é melhor desistir e ir embora. Se você ficou Luzia, se resistiu mais uma vez, é para, talvez, nos ensinar que as ondas passam, o permanente fica.

Naqueles dias do seu quase desaparecimento, eu cantava baixinho para você uma cantiga que diz: “Anda, Luzia pega o pandeiro e vem pro carnaval”. Era para pedir que voltasse, a despeito da tristeza da vida, porque ela é curta, a vida, e você bem sabe disso. Hoje quero cantar de novo num outro tom, pedindo para você aprontar a fantasia e alegrar seu olhar profundo.

Ao voltar, Luzia, você nos alerta sobre o poder destruidor do fogo que atingiu rápido e traiçoeiro o Museu onde seu crânio descansava. Mas também nos lembra da possibilidade de resistir. Quando o fogo atingiu aquele armário, quando começou a derreter a caixa de ferro onde você estava, o que aconteceu? Com que forças, Luzia, você permaneceu?

Ficar e resistir, a ordem é essa. Entendi sua mensagem, Luzia. O fogo que pareceu tão invencível não derrotou você. Sua volta nesse momento é providencial. Estávamos meio perdidos, meio sem rumo, desde o seu desaparecimento.

Texto escrito por Miriam Leitão. 
Link da reportagem: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/10/20/querida-luzia.ghtml

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