Alimentos e Evolução Humana
Mudança
alimentar foi a força básica para sofisticação física e social
|
William R. Leonard
Humanos,
estranhos primatas. Andamos sobre duas pernas, possuímos cérebros enormes e
colonizamos cada canto da Terra. Antropólogos e biólogos procuraram sempre
entender como a nossa raça diferenciou-se tão profundamente do modelo primata.
Foram desenvolvidos, ao longo dos anos, todos os tipos de hipóteses, visando
explicar cada uma dessas particularidades. Um conjunto de evidências, porém,
indica que essas idiossincrasias mistas de humanidade têm, na realidade, uma
linha em comum: elas são, basicamente, o resultado da seleção natural, atuando
para maximizar a qualidade dietética e a eficiência na obtenção de alimentos.
Mudanças na oferta de alimentos parecem ter influenciado fortemente nossos
ancestrais hominídeos. Assim, em um sentido evolutivo, somos o que comemos.
Consequentemente, o que comemos é ainda outra forma pela qual nos diferenciamos
de nosso parente primata. Populações de humanos contemporâneos pelo mundo
afora, adotam dietas mais calóricas e nutritivas que aquelas de nossos primos,
os grandes macacos. Então, quando e como os hábitos alimentares de nossos
ancestrais divergiram dos hábitos de outros primatas? Além disso, quanto os
humanos modernos se distanciaram do padrão alimentar ancestral?
O interesse científico na evolução das necessidades nutricionais humanas tem uma
longa história. Investigações relevantes começaram a ganhar espaço a partir de
1985, quando S. Boyd Eaton e Melvin J. Konner, da Emory University, publicaram
um artigo no New England Journal of Medicine intitulado "Nutrição
Paleolítica". Eles argumentam que a prevalência de muitas doenças crônicas
nas sociedades modernas - entre elas obesidade, hipertensão, doenças
coronarianas e diabetes - seriam o resultado de uma incompatibilidade entre
padrões dietéticos modernos e o tipo de dieta que nossa espécie desenvolveu
para se alimentar como caçadores-coletores pré-históricos.
Desde
então, a compreensão da evolução das necessidades nutricionais humanas tem
avançado consideravelmente - graças, em parte, às análises comparativas entre
populações de humanos vivendo tradicionalmente e outros primatas -, emergindo
daí um retrato com mais nuances. Sabemos, agora, que os humanos evoluíram não
para subsistirem com uma dieta paleolítica única, mas para desfrutarem de um
padrão alimentar diversificado.
Para se
compreender o papel da alimentação na evolução humana, devemos nos lembrar de
que a procura pelo alimento, seu consumo e, finalmente, como ele é usado para
processos biológicos são, todos, aspectos críticos da ecologia de um organismo.
A energia dinâmica entre organismos e seus ambientes, ou seja, a energia
despendida comparada à energia adquirida tem consequências adaptativas
importantes para a sobrevivência e reprodução. Esses dois componentes da
aptidão darwiniana refletem-se na forma como estimamos o estoque de energia de
um animal. A energia de manutenção é o que mantém um animal vivo. A energia
produtiva está associada à concepção e manutenção da prole para a próxima
geração. Para mamíferos, isso deve cobrir as demandas das mães durante a gravidez
e lactação.
O tipo de ambiente que uma criatura ocupa irá influenciar a distribuição de
energia entre esses componentes, em que condições mais duras representam,
obviamente, maiores dificuldades. No entanto, o objetivo de todos os organismos
é o mesmo: assegurar a reprodução, visando garantir, a longo prazo, o sucesso
das espécies. Portanto, ao observarmos a forma como os animais se deslocam para
obter a energia alimentar, podemos compreender melhor como a seleção natural
produz a mudança evolutiva.
Tornando-se bípedes
Sem exceção, os primatas não-humanos deslocam-se habitualmente sobre os quatro
membros quando estão no chão. Os cientistas geralmente assumem que o último
ancestral comum dos humanos e dos chimpanzés (nosso parente vivo mais próximo)
também era um quadrúpede. Desconhecemos quando, exatamente, o último ancestral
comum viveu. Mas indicações claras de bipedalismo - a característica que
distinguiu os antigos humanos dos outros macacos - são evidentes nas espécies
mais antigas conhecidas do Australopitecus, que viveu na África por volta de 4
milhões de anos atrás. Idéias sobre a evolução do bipedalismo são comuns na
literatura paleoantropológica.
C. Owen Lovejoy, da Kent State University, propôs, em 1981, que a locomoção
sobre as duas pernas liberou os braços para carregar crianças e objetos.
Recentemente, Kevin D. Hunt, da Indiana University, sugeriu que o bipedalismo
emergiu como uma postura de alimentação, por ter permitido o acesso a alimentos
que antes estavam fora de alcance. Peter Wheeler, da John Moores University,
Liver - pool, acrescentou que, ao se erguerem, os antigos humanos puderam
regular melhor a temperatura corporal, expondo menos o corpo ao calor abrasador
africano.
A lista
continua. Uma série de fatores provavelmente influenciou esse tipo de
locomoção. Minha própria pesquisa, conduzida em colaboração com minha esposa,
Márcia L. Robertson sugere que o bipedalismo desenvolveu-se em nossos
ancestrais, pelo menos em parte, por ser menos dispendioso energeticamente que
o deslocamento sobre quatro membros. Nossas análises dos custos de energia do
movimento em animais demonstraram que, no geral, a maior demanda depende do
peso do animal e da velocidade com que ele se desloca. O mais surpreendente no
movimento bipedal humano é que ele é notadamente mais econômico que o
deslocamento quadrupedal em velocidade de marcha.
A evolução maior dos primeiros hominídeos ocorreu em pastos e espaços de terra
mais abertos, onde a sustentação é mais difícil. Sem dúvida, os
caçadores-coletores humanos modernos que vivem nesses ambientes, e que nos
oferecem o melhor modelo disponível dos padrões de subsistência dos humanos
primitivos, frequentemente se deslocam 12 km por dia em busca de alimentos.
Quanto aos hominídeos que viveram entre 5 milhões e 1,8 milhão de anos atrás,
durante o Plioceno, a mudança climática estimulou essa revolução morfológica. À
medida que o continente africano foi se tornando mais árido, florestas deram
lugar a pastos, deixando os recursos alimentares distribuídos mais irregularmente.
O bipedalismo, nesse contexto, pode ser visto como uma das primeiras
estratégias na evolução nutricional humana, um padrão de movimento que teria
reduzido substancialmente o número de calorias despendidas na coleta de
alimentos.
O que é
extraordinário em nosso cérebro grande, sob uma perspectiva nutricional, é o
quanto de energia ele consome- aproximadamente 16 vezes mais que um tecido
muscular por unidade de peso. Porém, apesar de os humanos apresentarem, quanto
ao peso corporal, cérebros maiores que os dos outros primatas (três vezes maior
que o esperado), as necessidades totais de energia em repouso do corpo humano
não são maiores que a de qualquer outro mamífero do mesmo porte. Usamos uma
grande parte de nossa quota diária de energia para alimentar nossos cérebros
vorazes. Na verdade, o metabolismo de um cérebro em repouso ultrapassa de, 20 a
25%, as necessidades de energia de um humano adulto - bem mais que os 8 a 10%
observados em primatas não - humanos, e que os 3 a 5% em outros mamíferos.
Baseando-nos nas estimativas de tamanho corporal de hominídeos compiladas por
Henry M. McHenry, da University of California, em Davis, Robertson e eu
estimamos a proporção das necessidades de energia em repouso que poderiam ser
necessárias para alimentar os cérebros de nossos antigos ancestrais. Um
australopiteco típico, pesando entre 35 e 40 kg, com um cérebro de 450 cm3,
teria reservado cerca de 11% de sua energia em repouso para o cérebro. Enquanto
um H. erectus, pesando entre 55 e 60
kg e com um cérebro de cerca de 850 cm3, teria reservado cerca de 16% de sua
energia em repouso - ou seja, cerca de 250 das 1.500 kcal diárias - para este
órgão.
Como teria evoluído esse cérebro tão energeticamente dispendioso? Uma teoria,
desenvolvida por Dean Falk, da State University of New York, Albany, sustenta
que o bipedalismo permitiu aos hominídeos resfriar o sangue cranial e, consequentemente,
liberar o cérebro sensível do calor de temperaturas agressivas que haviam
colocado em cheque o seu tamanho. Suspeito que vários fatores estiveram em
jogo, mas a expansão do cérebro quase que certamente não teria ocorrido se os
hominídeos não tivessem adotado uma dieta suficientemente rica em calorias e
nutrientes, para suportar os custos associados.
Estudos comparativos em animais vivos sustentam essa afirmação. Além de todos
os primatas, espécies com cérebros maiores ingerem alimentos mais ricos; os
humanos são um exemplo extremo dessa correlação, ostentando o maior tamanho
relativo de cérebro e a dieta mais variada. Conforme as análises recentes de
Loren Cordain, da Colorado State University, os caçadores-coletores
contemporâneos obtêm, em média, 40 a 60% de energia da carne, do leite e de
outros produtos de origem animal.
Chimpanzés modernos, em comparação, obtêm somente entre 5 e 7% de suas calorias
provenientes dessas fontes. Alimentos de origem animal contêm bem mais calorias
e nutrientes que a maioria dos alimentos vegetais. Por exemplo, 100 g de carne
geram acima de 200 kcal. A mesma quantidade de frutas libera entre 50 e 100
kcal. Uma porção comparável de verduras produz somente entre 10 e 20 kcal. Faz
sentido, então, que, para o antigo Homo, adquirir mais matéria cinzenta
significou procurar alimentos energeticamente mais densos.
Os
fósseis, também, indicam que a melhoria na qualidade dietética acompanhou o
crescimento evolutivo do cérebro. Todos os australopitecos apresentavam
características esqueléticas e dentais estruturadas para processar alimentos
vegetais duros e de baixa qualidade. O australopiteco mais antigo e robusto -
um ramo da outra ponta da árvore genealógica humana, que viveu lado a lado com
membros de nosso próprio gênero - teve adaptações especialmente pronunciadas
para triturar alimentos vegetais fibrosos, incluindo faces maciças em forma de
prato, mandíbulas fortemente estruturadas; cristas sagitais, no alto do crânio,
para a fixação de potentes músculos mastigatórios; e dentes molares enormes e
fortemente esmaltados. (Isto não significa que os austrolopitecos nunca comiam
carne). Eles certamente ingeriam este alimento, ocasionalmente, tal como os
chimpanzés de hoje. Mas, membros mais antigos do gênero Homo, descendentes dos
graciosos australopitecos, possuíam faces e molares menores, mandíbulas mais
delicadas, e não apresentavam cristas sagitais - apesar de serem bem maiores,
em termos de porte corporal total, que seus predecessores. Em conjunto, essas
estruturas sugerem que o Homo
ancestral consumia menos matéria vegetal e mais alimentação animal.
Quanto ao que empurrou o Homo para uma qualidade dietética maior, necessária
para o crescimento cerebral, a mudança ambiental parece ter sido, mais uma vez,
o ponto de mutação evolucionário. A crescente aridez da paisagem africana
limitou a quantidade e variedade de alimentos vegetais comestíveis, disponíveis
aos hominídeos. Aqueles na mesma linha que deu origem aos robustos
australopitecos enfrentaram morfologicamente esse problema, desenvolvendo
especificidades anatômicas que permitiram a subsistência com alimentos de
mastigação mais difícil, porém com maior disponibilidade. O Homo percorreu outro caminho. A
disseminação de pastos também resultou em um aumento na abundância relativa de
mamíferos de pasto, como o antílope e a gazela, criando oportunidades para os
hominídeos capazes de explorá-los.
O H. erectus o fez, desenvolvendo a
primeira economia caça-e-coleta, em que animais de caça eram uma parte
significativa da dieta e os recursos eram compartilhados entre os membros dos
grupos de suprimento. Sinais dessa revolução comportamental são visíveis nos registros
arqueológicos, que apontam um aumento de carcaças de animais em sítios de
hominídeos durante esse período, junto com evidências de que as presas eram
abatidas com utilização de utensílios de pedra. Essas mudanças na dieta e
comportamento de coleta não tornaram nossos ancestrais exclusivamente
carnívoros. Mas, a adição de pequenas porções de comida animal ao cardápio,
combinada com a divisão dos recursos que é peculiar aos grupos de caça e
coleta, teria significantemente aumentado a qualidade e estabilidade das dietas
dos hominídeos. Uma melhor qualidade dietética, por si só, não explica por que
os cérebros dos hominídeos cresceram, mas parece ter desempenhado um papel
crítico na eclosão daquela mudança. Após um grande estímulo inicial no
crescimento do cérebro, a dieta e a expansão desse órgão provavelmente
interagiram em sinergia; cérebros maiores produziram comportamento social mais
complexo, o que conduziu a outras estratégias em táticas de suprimento e a uma
melhor alimentação que, por sua vez, fomentou a evolução adicional do cérebro.
Um banquete itinerante
A
evolução do H. erectus na África, 1,8
milhão de anos atrás, marcou a terceira virada na evolução humana: o movimento
inicial dos hominídeos para fora da África. Até recentemente, a localização e
as idades dos sítios fósseis conhecidos sugeriam que os primeiros Homo
permaneceram sedentários por poucas centenas de milhares de anos antes de se
aventurarem a espalhar-se pelo resto do Velho Mundo.
O êxodo africano começou tão logo o H. erectus se desenvolveu, por volta de 1,8 milhão de anos, em parte, provavelmente, porque ele precisava de um espaço maior que seus predecessores de menor porte. |
O ímpeto por trás dessa nova maneira de errar pelo mundo, novamente, parece ter
sido o alimento. O que um animal come é o que define a área que ele demanda
para sobreviver. Animais carnívoros geralmente necessitam de muito mais
território que os herbívoros de porte compatível, pois têm menos calorias
totais disponíveis por unidade de área. Sendo o H. erectus mais encorpado e cada vez mais dependente de dieta
animal, provavelmente precisaria de uma gleba maior que os australopitecos,
menores e mais vegetarianos. Utilizando dados de primatas contemporâneos e de
humanos caçadores-coletores como guia, Robertson, Susan Antón, da Rutgers
University, e eu calculamos que a estrutura corporal maior do H. erectus, combinada com o aumento
moderado de consumo de carne, demandaria de 8 a 10 vezes mais território se
comparado ao espaço requerido pelo tardio australopiteco - suficiente para
explicar a abrupta expansão de espécies fora da África. Ainda não sabemos exatamente
a que distância, para além do continente, esta mudança teria levado o H. erectus, mas eles podem ter sido
motivados e guiados a essas terras distantes por rebanhos de animais
migratórios.
Ao
mudarem para latitudes nórdicas, os humanos encontraram novos desafios
alimentares. Os neandertais, que viveram durante as últimas eras de gelo na
Europa, estiveram entre os primeiros humanos a habitar a região ártica, e eles,
quase que certamente, teriam necessitado de uma oferta calórica maior para
viver sob aquelas circunstâncias. Pistas de quais teriam sido essas demandas de
energia são fornecidas por dados de populações humanas tradicionais que habitam
hoje as regiões árticas. As populações siberianas de criadores de rena,
conhecidas como evenki - que estudei com Peter Katzmarzyk, da Queen\\`s
University, Ontário, e Victoria A. Galloway, da University of Toronto, ambas no
Canadá - e as populações de Inuits (esquimós) do Canadá Ártico apresentam
índices de metabolismo em repouso 15% acima do observado em pessoas de porte
similar vivendo em ambientes temperados.
As atividades energeticamente mais dispendiosas associadas à vida em um clima
nórdico elevaram a demanda calórica. Na verdade, enquanto um homem americano
pesando 73 kg e levando uma vida urbana necessita de cerca de 2.600 kg por dia,
um diminuto homem evenki pesando 57 kg, necessita de mais de 3 mil kcal/dia
para se sustentar. Usando essas populações nórdicas modernas como referência,
Mark Sorensen, da Northwestern University, e eu estimamos que os neandertais,
provavelmente, teriam necessitado de cerca de 4 mil kcal/dia para sobreviver.
Por terem sido capazes de preencher essas demandas, e pelo longo tempo que o
fizeram, muito sobre suas habilidades como coletores é revelado (ver box).
Dilemas
Modernos
Assim como as pressões para melhorar a qualidade alimentar influenciaram a
evolução dos primeiros humanos, também esses fatores desempenharam um papel
crucial nas expansões mais recentes do tamanho populacional. Inovações como
cozimento, agricultura e mesmo aspectos da tecnologia alimentar moderna podem,
todos, ser considerados táticas para elevar a qualidade da dieta humana.
Cozinhar, por um lado, aumenta a energia disponível em alimentos vegetais
selvagens. Com o advento da agricultura, os humanos começaram a manipular
espécies de plantas marginais, visando maior produtividade, digestibilidade e
conteúdo nutricional - tornando as plantas essencialmente mais próximas dos
alimentos animais. Esse tipo de improviso continua hoje, com a manipulação
genética de espécies para a produção de "melhores" frutas, vegetais e
grãos. Da mesma forma, o desenvolvimento de suplementos nutricionais, que
substituem refeições, é uma continuação da tendência iniciada por nossos
ancestrais: obter o máximo de retorno nutricional, no menor volume e com o
mínimo esforço físico.
A estratégia evidentemente funcionou: os humanos estão aqui hoje, e em números
recordes. O testamento mais contundente, porém, da importância de alimentos
ricos em energia e nutrientes na evolução humana, talvez esteja na observação
de que tantas preocupações com a saúde, que atormentam as sociedades em todo o
planeta, tenham origem nos desvios da dinâmica energética estabelecida por
nossos ancestrais. Para as crianças em populações rurais de regiões em
desenvolvimento, dietas de baixa qualidade resultam em crescimento físico
deficiente e altas taxas de mortalidade nos primeiros anos de vida. Nesses
casos, os alimentos oferecidos às crianças após o desmame não são, em geral,
nutritivos e energeticamente fortes o suficiente para suprir as extensas
necessidades associadas a esse período. Apesar de essas crianças, ao nascerem,
apresentarem altura e peso tipicamente similares às de crianças
norte-americanas, por exemplo, são menores e mais leves por volta dos três
anos, assemelhando-se, frequentemente, aos pequenos 2 ou 3% das crianças
norte-americanas da mesma idade e sexo.
Estamos encarando o problema oposto no mundo industrial: os registros de
obesidade na infância e na vida adulta estão crescendo, porque nosso desejo por
alimentos ricos em energia - notadamente aqueles que incluem gordura e açúcar -
tornaram-se muito disponíveis e relativamente baratos. Conforme estimativas
recentes, mais da metade dos adultos norte-americanos estão acima do peso. A
obesidade também apareceu em algumas regiões em desenvolvimento, onde, até há
uma geração, era virtualmente desconhecida. Esse aparente paradoxo surgiu
quando pessoas que cresceram malnutridas se mudaram das áreas rurais para
lugares urbanos, onde o alimento tem disponibilidade imediata. A obesidade e
outras doenças comuns do mundo moderno, de alguma forma, são extensões de um
contexto que começou há milhões de anos. Nós somos vítimas de nosso próprio
sucesso evolutivo, desenvolvendo uma dieta calórica concentrada, mas
minimizando a quantidade de energia de manutenção despendida em atividade
física.
Não foram somente as mudanças na dieta que difundiram muitos dos nossos
problemas de saúde, mas a interação entre trocas alimentares e mudanças no
estilo de vida. Os problemas de saúde modernos são, com frequência, retratados
como o resultado da ingestão de alimentos "ruins", que são desvios da
dieta humana natural - uma super simplificação incorporada pelo debate atual
sobre os méritos relativos de uma dieta superprotéica e rica em gorduras
tipo-Atkins, ou uma alternativa pobre em gorduras, que enfatiza carboidratos
complexos.
Essa é
uma visão fundamentalmente equivocada de se enfocar as necessidades
nutricionais humanas. A nossa espécie não está apta a subsistir com uma dieta
única e ideal. O que é singular nos seres humanos é a extraordinária variedade
do que comemos. Fomos capazes de prosperar em quase todos os ecos- sistemas
sobre a Terra, consumindo desde alimentos de origem animal, entre as populações
do Ártico, até, basicamente, tubérculos e cereais, entre as populações dos
Andes. Sem dúvida, um marco da evolução humana tem sido a diversidade de
estratégias que desenvolvemos para criar dietas adequadas às nossas
necessidades, e a sempre crescente eficiência com que extraímos energia e
nutrientes do ambiente. O desafio que as sociedades enfrentam agora é o
balanceamento entre as calorias que consumimos e as que queimamos.
O Uso do Fogo
A
ingestão de mais alimentos de origem animal é uma forma de aumentar a densidade
calórica e nutricional, uma mudança que parece ter sido crítica na evolução da
raça humana. Mas poderiam nossos antepassados ter melhorado a qualidade
alimentar de outra forma? Richard Wrangham, da Harvard University, e colegas
recentemente pesquisaram a importância do cozimento na evolução humana. Eles
demonstraram que cozinhar não só faz com que os vegetais fiquem mais macios e
fáceis de se mastigar, como aumenta substancialmente o conteúdo energético
disponível, particularmente em tubérculos feculosos como a batata e a mandioca.
Quando crus, as féculas não são imediatamente quebradas pelas enzimas do corpo
humano. Quando aquecidos, porém, esses carboidratos complexos tornam-se mais
digestíveis e, portanto, liberam mais calorias.
O cozimento de vegetais, especialmente tubérculos, permitiu a expansão do cérebro, argumentam Richard Wrangham, da Harvard University, e colaboradores |
Os pesquisadores propuseram que o Homo
erectus foi, provavelmente, o primeiro hominídeo a usar o fogo para
cozinhar há, talvez, 1,8 milhão de anos.
Eles sustentam que aquele cozido antigo de vegetais (especialmente tubérculos)
permitiu à espécie desenvolver dentes pequenos e cérebros maiores que seus
antecessores. Além disso, as calorias extras permitiram ao H. erectus começar a caçar - uma atividade energeticamente
dispendiosa - com maior frequência. Sob uma perspectiva energética, essa é uma
linha suficientemente lógica de raciocínio. O que fica difícil de aceitar nessa
hipótese é a evidência arqueológica que a equipe de Wrangham utiliza para
defendê-la. Os autores citam sítios do leste africano, Koobi Fora e Chesowanja,
datados em torno de 1,6 e 1,4 milhão de anos, respectivamente, para indicar o
controle do fogo pelo H. erectus.
Esses locais, realmente, mostram evidências de fogueiras, mas se hominídeos
foram os responsáveis por essas fogueiras é um assunto a ser debatido. A mais
antiga e inequívoca manifestação do uso do fogo - fornos de pedra e ossos de
animais queimados em sítios na Europa - datam somente de cerca de 200 mil anos. O cozimento foi claramente uma inovação que melhorou substancialmente a
qualidade da alimentação humana. Mas ainda continua incerto quando essa prática
apareceu. - W. R. L.
Caçadores Neandertais
Para
reconstruir o que os primeiros humanos comeram, pesquisadores têm,
tradicionalmente, estudado sinais característicos em dentes fossilizados e
crânios, restos arqueológicos de atividades relacionadas à alimentação, e às
dietas de humanos e macacos vivos. Mas, cada vez mais, os investigadores estão
extraindo outra fonte de dados, a composição química de fósseis de ossos. Essa
abordagem tem permitido descobertas especialmente intrigantes com relação aos
neandertais.
As refeições neandertais consistiam principalmente em carne, de acordo com análises químicas de ossos |
Michael Richards, atualmente na University of Bradford, Inglaterra, e colegas
examinaram, recentemente, isótopos de carbono (13C) e nitrogênio (15N) em ossos
de neandertais de 29 mil anos da Caverna Vindija, Croácia. As proporções
relativas desses isótopos na parte protéica do osso humano, conhecida como
colágeno, refletem diretamente a quantidade de proteína da dieta do indivíduo.
Assim, pela comparação isotópica das "assinaturas" nos ossos dos
neandertais com a de outros animais vivendo no mesmo ambiente, os autores
puderam determinar se a massa protéica obtida pelos neandertais era proveniente
de vegetais ou animais. As análises demonstram que os neandertais de Vindija
apresentavam níveis de 15N comparáveis àqueles vistos em carnívoros do norte,
como as raposas e os lobos, indicando que eles obtiveram quase toda sua
proteína dietética de alimentos de origem animal. Um trabalho anterior sugeriu
que a ineficiência no suprimento pode ter sido um fator do subseqüente fim dos
neandertais. Mas Richard e colaboradores argumentam que, para consumir tanto
alimento de origem animal, como eles aparentemente o fizeram, os neandertais
devem ter sido caçadores exímios. Essas descobertas são parte de um corpo
crescente de literatura, sugerindo que o comportamento de subsistência dos
neandertais era mais complexo que o previamente imaginado
(ver "Who Were the Neandertals?" de Kate Wong; SCIENTIFIC AMERICAN, Abril 2000). - W. R. L.
(ver "Who Were the Neandertals?" de Kate Wong; SCIENTIFIC AMERICAN, Abril 2000). - W. R. L.
A Diversidade das dietas
A variedade
de estratégias alimentares de sucesso, empregadas pelas populações que vivem
tradicionalmente, proporcionam uma perspectiva importante no avanço dos debates
sobre como regimes com índices altos de proteína e baixos de carboidrato, como
a dieta de Atkins, comparam-se com os que destacam carboidratos complexos e
restrição à gordura. Não é surpresa o fato de que esses dois esquemas produzem
perda de massa, porque ambos ajudam as pessoas a diminuir o peso através do
mesmo mecanismo básico: limitando as maiores fontes de calorias. Quando você
cria um déficit de energia - ou seja, quando você consome menos calorias do que
despende -, seu corpo começa a queimar seus estoques de gordura e você perde
peso.
Uma
questão maior sobre as dietas saudáveis de manutenção ou de perda de peso é se
elas criam padrões alimentares mantidos ao longo do tempo. Nesse ponto, parece
que as dietas que limitam em excesso grandes categorias de alimentos
(carboidratos, por exemplo) são muito mais difíceis de serem mantidas que as
dietas que restringem moderadamente. No caso do regime tipo - Atkins, existe
uma preocupação com as potenciais consequências, a longo prazo, da ingestão de
alimentos provindos, em sua maior parte, de animais confinados, com tendência a
conter mais gordura e mais colesterol "ruim".
Em setembro, o National Academy of Science Institute of Medicin lançou novas
diretrizes de dieta e exercício que captam bem as idéias apresentadas aqui. Não
apenas o Instituto estabeleceu faixas maiores para a quantidade de
carboidratos, gorduras e proteínas condizentes com uma dieta saudável -
reconhecendo que existem várias formas de suprir as necessidades nutricionais
-, como dobrou a quantidade recomendada de atividade física moderadamente
intensa para uma hora por dia. Ao seguir essas informações e balanceando o que
comemos com exercícios, podemos viver não só de uma forma parecida com os
evenki da Sibéria e outras sociedades tradicionais, como também com os nossos
ancestrais hominídeos. - W. R. L.
RESUMO / Dieta e Evolução Humana
- As
características que mais distinguem os humanos de outros primatas são,
certamente, os resultados da seleção natural, agindo no melhoramento da
qualidade da alimentação humana, e a eficiência com que nossos ancestrais
obtiveram os alimentos. Alguns cientistas sugeriram que muitos dos problemas de
saúde enfrentados pelas sociedades modernas seriam consequências de uma
discrepância entre o que ingerimos e o que nossos antepassados comeram.
- Estudos entre populações que vivem tradicionalmente apontam que os humanos
modernos estão aptos a suprir suas necessidades nutricionais usando uma ampla
variedade de estratégias. Adquirimos flexibilidade alimentar. A preocupação com
a saúde no mundo industrial, em que alimentos calóricos concentrados estão
facilmente disponíveis, não se originam de desvios de uma dieta específica, mas
de um desequilíbrio entre a energia que consumimos e a que despendemos.
Para
conhecer mais
Evolutionary Perspectives
on Human Nutrition: The Influence of
Brain and Body Size on Diet and Metabolism. William R. Leonard e Marcia L.
Robertson in American Journal of Human Biology, Vol. 6, páginas 77- 88; Janeiro
de 1994.
Rethinking the Energetics of Bipedality. William R. Leonard e
Marcia L. Robertson in Current Anthropology, Vol. 38, páginas 304 - 309;abril
de 1997.
Human Biology: An Evolutionary and Biocultural Approach. Editado por Sara Stinson, Barry
Bogin, Rebecca Huss-Ashmore e Dennis O\\`Rourke. Wiley-Liss,
2000.
Ecology, Health and Lifestyle Change among the Evenki Herders of Siberia. William
R. Leonard, Victoria A. Galloway, Evgueni Ivakine, Ludmilla Osipova e Marina
Kazakovtseva in Human Biology of Pastoral Populations. Editado por William R.
Leonard and Michael H. Crawford. Cambridge University Press, 2002.
An
Ecomorphological Model of the Initial Hominid Dispersal from
Disponível
em:
Texto de fácil entendimento. Eu tinha algumas dúvidas de como nós evoluímos e todas as minhas dúvidas foram sanadas. Parabéns.
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